Criando Desafetos - Texto de Ana Cål

 



Trabalhei muito tempo fazendo comerciais para prefeituras e governo de estado.

Já citei no texto Jornalismo x Publicidade, que fiz durante doze anos os comerciais do governo Alckmin. 

Várias agências atendiam a conta do governo e a criação vira e mexe era trocada, também por mais de uma década era difícil uma dupla permanecer na mesma agência.

Nessa troca de cadeiras o cara que entrava tentava mudar a cara dos filmes e na maioria das vezes dava um tiro no pé. Primeiro que a soberba não permite para alguns criativos escutar a experiência de quem já conhece muito o cliente e sabe o que funciona e o que não, o que é aprovado e o que volta, mas eu sempre tento, pra poupar o desgaste do bate volta na edição. Outra característica dessa gestão era não filmar o que não existia, ou mostrar melhor do que era.  A gente podia gravar a inauguração de alguma obra antes de abrir, mas o filme só ia ao ar quando tivesse inaugurado. Tinha um mantra da comunicação do palácio em todas as reuniões.

– Não quero que minha sala fique cheia de repórteres questionando a veracidade do que foi mostrado, no dia seguinte do filme no ar.

Ou seja, não fazíamos filme de obras que depois eram abandonadas, nem projetos mostrados no comercial de um jeito que na real não eram bem assim. Tenho várias histórias, conto em outro texto.

Quando um filme tem um problema de roteiro, muitas vezes o cliente não percebe o que incomoda e gonga a trilha, às vezes são feitas várias pro mesmo filme. Aí vai pra locução, enfim fica todo mundo batendo cabeça pra acertar.

Peguei um assim. Filme de trinta segundos, vinte e quatro segundos de cenas lúdicas, três segundos do produto e três segundos de assinatura.

Já de cara vi que ia dar merda, quem paga uma puta grana de produção e mídia pra aparecer somente três segundos de seu produto? Não falei nada na reunião de briefing porque o roteiro estava aprovado, portanto ...

Vou fazer um aparte aqui. Antes de ir pra reunião eu cronometro o roteiro pra ver se tem trinta segundos e já comunico no início da reunião pra ajustar, porque às vezes caem fora cenas que não precisamos produzir à toa e podemos nos dedicar as que valem. Todos os filmes desse criativo estourava. Um dia ele ficou puto comigo dizendo que eu que viajava, que ele sempre conferia o tempo e estava certo. Eu disse então cronometre esse pra mim. Na minha marcação tava com três ou quatro segundos a mais, isso significa três cenas mais ou menos.

Dei meu cronômetro pro cara e ele pegou o roteiro. Ficou em silêncio com o papel na mão e acionou o tempo.

- Onde está estourando isso?

 Eu falei: 

- Você cronometra o pensamento? Por isso dá errado! Tem que ler em voz alta articulando bem as palavras pra ter o tempo preciso!

Não preciso dizer que o cara ficou puto comigo. Mas teve que engolir.

Acho que ficou com aquilo entalado na garganta, porque esse filme foi um parto pra sair. Só complicava. Ele colocava defeito em tudo.

Voilá! Filme pronto tal e qual o roteiro pedia.

Já na aprovação a própria dupla de criação percebeu que tinha alguma coisa errada. O filme estava frouxo.

E começou a detonar o filme.

Depois de várias versões, vai para o cliente e claro, VOLTA!

Aí aquele estresse gigante dos caras. Nossa relação já tinha azedado no cronômetro, imagina nessas alturas como tava. Eu lembro que começamos a bater boca na ilha até que foram embora putos. Clima péssimo eu puta da vida falei pro editor:

- Vamos montar o filme que vai ser aprovado.

Já tínhamos feito vários filmes durante os anos desse produto, então no arquivo tinha imagem pra caramba. O locutor era o mesmo há mais de uma década, marca registrada desse governo. Peguei vários trechos da locução de todos os filmes mais as imagens de arquivo e fiz um monstro, usei só 3 segundos de imagem do filme dos caras. Pra quem não é do meio, chamamos de monstro uma montagem que é feita como um layout, nesse caso ficou tosca porque formei um quebra cabeça de palavras dos diversos filmes pra montar as frases, se aprovado precisaria regravar a locução. Passei por cima da dupla. Liguei pro superior dos caras e disse:

-Vou fazer um monstro e te mandar. Você vai entender de cara onde está o problema desse filme. Se eu estiver errada, ok.

Fiz e mandei. Esse monstro foi parar na mão da dupla com o recado: “ajusta o roteiro pra locução”. Não preciso dizer que esse cara deve me odiar e se algum dia cruzar comigo num job vai me cortar, ou me aceitar só pra me fazer comer o pão que o diabo amassou. 

A criação devia escutar a direção, principalmente quando conhece o cliente, e deixar o ego de lado. Estamos a favor do filme, não contra. Aqui não é uma questão de quem é melhor que quem. Quem é cliente e quem é fornecedor. As pessoas complicam as relações. Talvez Fernando Meireles nunca tenha passado por isso, é claro.

Comentários

  1. Aí deixa claríssimo o ego , a arrogância, o não vou dar o braço a torcer pra não me rebaixar entende? Meu Deus o orgulho tbm nos deixa cego.

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    1. Ficando velha amiga, intolerante pra esses tipos

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