O projeto Luz para Todos foi criado em 2003 no governo Lula.
Não lembro a data que fiz esse job, era um ano depois de ter sido implantado na Terra Indígena São Marcos em Roraima.
A idéia era ver as mudanças que aconteceram depois da chegada da luz. Escolheram uma tribo e lá fomos nós.
Equipe pequena, nosso querido João Mereu, diretor de fotografia, que perdemos ano passado pra COVID, Ricardo Peixe fazendo assistência de câmera e áudio, Waldir Freitas produtor (lá de Boa Vista) e Evandro fazendo a segunda câmera.
Chegamos em Boa Vista na madruga e como sempre ao descer do avião a roupa imediatamente cola no corpo de tão quente que é.
Dia seguinte partimos para a Terra Indígena São Marcos.
Tínhamos como guia, um menino de 19 anos que nasceu naquela tribo, mas morava em Boa Vista pra estudar e trabalhar. Vou chamar de Gabriel porque não lembro o nome dele.
Viajamos uns duzentos e poucos quilômetros até chegar num rio, pegar a balsa e continuar em estrada de terra.
Enfim chegamos na aldeia.
A produção já tinha escolhido as casas e as pessoas que iríamos visitar e gravar os depoimentos sobre como era antes e como ficou depois de chegar a luz.
Como tem mulher!!! E como tem mãe solteira!!!
Chegamos e já fomos pra escola estadual, grande, bem cuidada e depois partimos para as casas.
Primeira casa que chegamos era de uma professora e seu marido, zelador dessa escola.
As casas são pequenas, bem pequenas, mas o terreno grande, tanto que você não vê o vizinho. Eles deveriam ser os novos ricos do pedaço. A cozinha por onde você entra, tem uma passagem pra sala que tem uma passagem pro quarto. Na cozinha, tudo o que você imaginar que tenha tomada, tinha. Era geladeira, batedeira, mixer, micro ondas, liquidificador, mais um monte de coisas que nem devem usar. Tinha um tanquinho na cozinha e na parte de fora da casa tinha uma máquina de lavar.
Na sala um sofá, a televisão, o ventilador e uma montanha de bichinhos de pelúcia da filha. UM MONTE que quase chegava ao teto. E depois o quarto onde dormiam os três. Ali não lembro se tinha alguma coisa com tomada a não ser um ventilador.
No banheiro que fica fora da casa tinha chuveiro elétrico.
Partimos para uma casa mais modesta. A casa era da cunhada de quem ia dar a entrevista. Essa cunhada batia em minha cintura uma figura! Simpática, engraçada e muito falante, normalmente eles são tímidos, ficou conversando comigo enquanto a entrevistada não chegava e a equipe posicionava luz e câmera.
Juntou a fome com a peste eu e essa mulher conversando. Ela olhava pra cima pra falar comigo até que me sentei pra não dar torcicolo nela. Depois de tanto bate papo me disse:
- Nossa você parece uma artista de cinema!
Me matei de rir porque eu tava fisicamente numa de minhas piores fases e com aquele calor o cabelo devia estar grudado, eu tava um desastre. E completou:
- E fala com a gente como se fosse igual.
Ali me deu um treco. Como as pessoas falam com eles? Não estiquei essa conversa porque a entrevistada chegou e eu tinha que “prosear” com ela até ela destravar, pra daí a gente gravar.
Foi bem bacana nessa casa, na saída a cunhada me abraçou tanto e continuava elogiando a “a artista de cinema”. Tem pessoas que a gente conhece e sabe que nunca mais vai ver, mas marca.
Hora do almoço o Waldir tinha produzido uma casa pra gente comer.
Entramos pela cozinha, tinha a pia, uma mesa grandinha, o fogão e a geladeira. A família toda (acho que uns cinco) estava encostada na pia nos recebendo, tímidos. Entrei primeiro, apertei a mão de todos e fui lá a ponta da mesa pra dar espaço pros meninos entrarem e sentarem. Nos serviram galinha ao molho pardo. Puts tenho nojo de sangue e ali pensei: Nem ouse imaginar tudo sendo cozido no sangue, pense que é um molho de tomate e coma até lamber o prato. Nesse canto da mesa tinham os talheres. Peguei um garfo, um prato e sentei. Não reparei que o único garfo era o meu. Só reparei quando vi a cara dos meninos segurando a colher, não tinha faca. Serviram os pratos e o cheiro estava delicioso. Eu dei uma olhada geral nos meninos e tive que me segurar pra não rir deles lutando pra cortar o pescoço da galinha com a colher, porque tinha tanto molho que não dava pra pegar na mão. Todos os pedaços eram difíceis de cortar, eu ainda espetava com o garfo e mandava ver. A família ficou toda “cheia” por ter sido escolhida para alimentar “os estrangeiros”.
Lá no meio da tarde eu queria gravar no centro da aldeia uma movimentação de gente porque não tinha um lugar que desse pra gravar uma geral de cima pra mostrar as casas, já que são tão distantes uma das outras.
Eu perguntei pro Gabriel:
- Que horas é o “rush” aqui?
E ele:
- Como assim?
- A hora em que todos voltam pra casa do trabalho, e
passam por aqui?
- Não tem isso.
- E onde eles estão agora?
Porque não vi um homem em nenhuma casa que fomos, a não ser o zelador e onde almoçamos.
- Dormindo.
Como eu tinha conhecido o casal que trabalhava na escola, pensei que uma grande maioria trabalhasse lá ou no posto de saúde ou sei lá onde. Claro que a não jornalista aqui perguntou:
- Mas como eles compram as coisas?
Ele meio sem graça disse:
- Agora tem o Bolsa Família aí não precisam trabalhar.
Gravamos mais algumas coisas e fomos pra mais uma casa, já era noite.
O Mereu fez uma luz linda, tanto externa como interna.
Essa casa era uma tripa, você entrava pela sala que tinha televisão, rádio, ventilador, um aparelho de som, passava pelo quarto e saía na cozinha. Lá também tinham algumas coisas com tomada, bem menos que na casa da professora, mas tinha um freezer além da geladeira.
Antes da chegada da luz, eles saíam para caçar e dividiam a caça com a comunidade porque estragava, agora que cada um tem seu freezer, não era mais assim.
A gente tinha que tomar cuidado ao andar na cozinha porque tinha umas tripas penduradas num varal e como eles são baixinhos a altura do varal estava certa pra eles e se a gente batesse a cabeça nas tripas ia fazer um esparramo fácil. Eram peles que eles deixavam ali pra secar, pra depois comer. Nessa casa tinha uma senhora, sua filha e a neta. Mais uma mãe solteira.
Lá pelas tantas, eu só tinha feito xixi as 6 da manhã, pedi
pra ir ao banheiro. A senhora me mostrou lá fora um lugar cercado por um
murinho baixo e falou:
- Entra, anda um pouco que tem um buraco no chão.
Entrei, não enxergava picas, o chão era de terra batida, não pensei duas vezes, me desculpei mentalmente com a dona da casa, mas não fui muito além com medo de enterrar o pé ou cair no buraco. Fiz xixi em qualquer lugar.
Por último gravamos o posto de saúde. Enquanto o Mereu fazia a luz eu fiquei de papo com o Gabriel.
- Qual o seu nome indígena?
- Não tenho.
- Mas você fala macuxi. – Afirmei, não perguntei.
- Não.
- Como é o nome de seus pais?
- Jorge e Dirce (coloquei qualquer um porque não lembro).
- Eles não têm nome indígena?
- Não.
- Por quê?
- Ah, porque a gente tem vergonha.
- Eles também não falam macuxi?
- Não, só os mais velhos falam.
Daí pra frente fui ligando as coisas.
Na saída o Mereu percebeu um monte de escorpião grudado no batente e nas paredes externas do posto e mirou a luz em direção ao carro pra gente não pisar. NUNCA VI tanto escorpião na vida. Tava abarrotado. Sorte que ninguém foi picado.
Conclusão da experiência: Muitas culturas indígenas estão sendo extintas, não ensinam mais a língua para os filhos, a terceira geração já não quer ficar ali, tem vergonha de sua origem, partem pra capital, a caça não é mais coletiva.
Não existe mais um por todos e todos por um. O progresso chega (não consigo imaginar viver sem luz) e ajuda a terem uma vida melhor, mas a quarta geração nem vai saber como era viver em aldeia, viver em comunidade.
Adorei!
ResponderExcluirMe deu um presente! Obrigada
ExcluirQuando eu falo q a Internet veio tanto para o lado positivo como para o lado negativo alguns me criticam, onde esta aquele lado caloroso de se falar por tel ou cel? De ouvir a voz da pessoa? De se encontrar? De se abraçar? Agora, é tudo por WhatsApp, face, vídeo e pronto, missão cumprida....
ResponderExcluirEu ainda sou uma das poucas da família q quando alguém da minha família ou amigo fazem aniversário, ou precisa de uma ajuda eu LIGO.....
Falo isso em comparação a luz q chegou e aos poucos vão minando culturas belíssimas.......
É claro q precisamos do novo, de tudo q pode facilitar, MAAAASSSS......🤷♀️
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