O Audiovisual, O tempo e a Família - Texto de Fernando Nunes

 



Quando entrei na Globotec o jeito de trabalhar era igual ao de TV. Seis horas por dia.

Depois de alguns anos foram contratados para reestruturarem a Globotec, o diretor de cena José Amâncio e o diretor de fotografia Walter Carvalho. Aqui vale uma explicação. No mercado audiovisual existem dois diretores de fotografia homônimos, o Walter Carvalho radicado no Rio de Janeiro é mais conhecido por atuar em longa e curta metragem. O Walter Carvalho radicado em São Paulo é conhecido pelo seu trabalho na publicidade, embora ambos já tenham circulado por todos os tipos de mídia com a mesma competência, sempre gostei muito do trabalho dos dois. O Walter Carvalho que me refiro é o de São Paulo.

Na época, a equipe começava um comercial, depois de seis horas era trocada inteira, mesmo que faltasse muito pouco pra terminar.  

Na reestruturação eles decidiram que a Globotec deveria funcionar com o modelo das produtoras no mercado. A equipe que começasse um trabalho iria até o final, não importando quanto tempo demorasse. Iriam aumentar o salário dos funcionários e não teríamos mais hora extra. Isso foi uma imposição, marcaram um dia para individualmente conversarem com os funcionários, quem não quisesse seria demitido.

Eu não conhecia outra forma de trabalho a não ser o que vigorava na Globotec até então, por isso fiquei revoltado e decidido a não aceitar e ser mandado embora. O meu chefe direto na época era o Roberto Pace tentou me convencer de todas as formas e me chamou para um café na padaria, e me disse:

- Fernando a vida não é assim, você não pode ser tão radical. Como vai saber se uma coisa não é boa se não experimentar? O que custa você aceitar e, com calma, decide se quer ou não continuar...

Fui me acalmando e esse argumento me convenceu, aceitei.

Não demorou muito e percebi o quanto era improdutivo o esquema de trabalho antigo. Passar o que estava fazendo para o Sócrates, ou vice e versa, era ridículo. Cada diretor tem um estilo, um jeito de fazer, era como no meio de um quadro entregar seus pincéis e tintas a outro. Além do desgaste com o diretor que tinha que explicar tudo que estava pensando para outra equipe e que já havia sido dito, não fazia sentido mesmo.

Mas não é por ai que quero continuar, foi só uma introdução para o verdadeiro tema, o tempo.

Passei a não mais controlar meu tempo. Depois de alguns anos pedi demissão e virei freelancer, piorou.  Como free você não tem um salário garantido, nem férias, nem décimo terceiro. Se não trabalha não ganha, mesmo que em determinado mês tenha ganho o que precisa, não sabe como será o próximo. Então trabalho não se recusa, a não ser por alguns motivos: se o cachê não te interessa ou se a produtora não te dá condições de trabalho, afinal a única que coisa que um freelancer tem é o seu nome.

Minha vida familiar sempre foi uma incógnita por causa do tempo, nunca pude me comprometer com nada.

Quando minha primeira filha nasceu eu tinha algumas diárias agendadas. Acompanhei o parto e na manhã seguinte já estava trabalhando. Chegava de madrugada e ficava grudado no vidro do berçário praticamente babando, ia para o quarto ver a Silvia, minha mulher,  dormia um pouco e de manhã já saia de novo. Sempre fiquei imaginando o que as enfermeiras pensavam.

Perdi inúmeros aniversários da minha segunda filha. Na verdade perdi das duas, mas da segunda foi muito mais, ela nasceu em Dezembro quando o mercado publicitário estava bombando por causa do Natal e quase sempre tinha trabalho.

A Silvia tentou me fazer surpresa duas vezes. Na primeira comprou um voo de balão no dia do meu aniversário. Na segunda comprou ingresso para o show do Djavan. Imagina...nas duas tinha acertado trabalho antes dela me contar. Surpresa nunca mais!

O Luis, meu cunhado, nos convidou para ser padrinho de casamento com seis meses de antecedência e me falou:

- Estou te convidando com essa antecedência pra você não me deixar na mão, olha lá...

Lembra do texto Saint-Martin? Pois é, estava fazendo esse trabalho e a volta foi meio complicada, atrasou. Cheguei um dia antes do casamento no meio da tarde. Corri para o lugar que alugava a roupa de padrinho para experimentar e tiveram que ajustar, por pouco não fui trucidado pelo Luis.

Procurava aproveitar todo tempo que tinha disponível para estar com minhas filhas. Como a Silvia também trabalhava, teve uma vez que levei Clarissa, a mais velha, ainda com meses para uma consulta. Naquela época não era comum o pai estar sozinho. No consultório me senti como animal exótico no zoológico. Aquele monte de mães todas olhando pra mim. Umas com olhar de pena, outras com curiosidades e outras com desprezo, e eu nem aí, feliz por estar com minha filha.

A mesma situação passei muitas vezes no playground do prédio que morava. As mães não entendiam nada, ora eu estava lá de manhã, outras à tarde. Elas morriam de curiosidade para saber em que eu trabalhava, mas não perguntavam e eu não falava nada.

Primeira campanha do Fernando Henrique para presidente. Campanha pesada, em quinze dias não vi minhas filhas, saía cedo com elas ainda dormindo, voltava tarde e elas já dormindo. Um dia cheguei de madrugada, de tão cansado e com a adrenalina do trabalho ainda correndo nas veias, não conseguia dormir rápido, tinha que relaxar. Liguei a TV, peguei uma bebida e fiquei na sala. Não deu cinco minutos e a Carol, então com dois anos, aparece com aquela cara de sono e me fala:

- Fê (até hoje elas me chamam pelo nome), a noite foi feita pra dormir, e olha, vai rápido antes que a mãe acorda e te dá bronca...

Morri de rir e só depois soube porque ela disse isso. A Carol deu pra despertar de madrugada e ia acordar a mãe, então a Silvia, puta, falava pra ela:

- Carol a noite foi feita pra dormir, se você acordar se cobre e dorme de novo, não precisa me chamar!

A vida familiar de quem trabalha no audiovisual é bastante complicada, mais ainda como freelancer. Tenho muito mais pra contar, outra hora conto outras histórias, o tempo tá curto agora...

Eu e a Clarissa desmaiados depois de brincar muuuuiiito

Eu e a Carolina em uma das poucas festas juninas que pude acompanhar


Comentários

  1. É meu amigo trabalhar por conta não é fácil não, temos q abdicar de tantas coisas e ser cobrados tbm de tantas coisas, e nós mesmos nos cobrando tbm de tantas coisas, como por exemplo: será q valeu a pena???? 🤔

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    1. Fernando Nunes24/11/2021, 18:15

      Katia, o egoísmo faz parte do que somos, nesse caso lamento muito o que perdi, mas trabalhar no que a gente ama é uma dádiva. O que curti minha família em cada pedacinho do tempo que tinha valeu muito a pena. Muito obrigado!

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  3. Essa é a nossa profissão, comecei no telejornalismo e não havia esta rede de emissoras como hoje e era comum você chegar para um dia normal de trabalho e acabar em algumas horas lá no Ceará cobrindo um acidente aéreo, por exemplo e voltar apenas 3 ou 4 dias depois para casa. Na publicidade também, era comum passar 2 dias dentro de um estúdio e só sair quando tudo estivesse devidamente realizado. Era duro, mas era a mais pura raça, entrega e satisfação com a profissão escolhida. Um abraço

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    1. É verdade Wesley, a vida no telejornalismo também é uma caixinha de surpresas.bj querido!

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    2. Fernando Nunes29/11/2021, 16:13

      É isso Wesley. Na verdade quem sofre é quem convive com a gente, pra nós, que amamos o que fazemos, tá tudo certo. Muito obrigado, um grande abraço.

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