Na Contramão - Texto de Ana Cal

 

Minha avó morava em Santa Catarina e quando precisava ir ao médico vinha pra São Paulo. Dessa vez pegou carona com seu irmão. Papo vai papo vem ele perguntou no que trabalhavam as filhas da Tata, minha mãe. Ela disse:

- A mais velha é dentista, a mais nova trabalha na Rádio Globo e a do meio não sei muito bem, é uma coisa meio atrapalhada, acho que tem a ver com propaganda. Ela me explicou uma vez e não entendi.

Ele ligava quase diariamente lá pra casa pra saber como ela estava. Um dia atendi o telefone e ele me perguntou qual das três filhas eu era. Bem informado percebeu que eu era a tal que tinha a profissão atrapalhada e que naquele momento estava no último ano da faculdade e sem trabalho, eu tinha acabado um estágio numa agência. A empresa dele tinha vários ramos e um deles era uma produtora.

Conversamos mais um pouco e passei o telefone pra minha avó.

Toca o telefone novamente eu atendo e era ele.

- Guria tu podes ver meu cacique na produtora hoje a tarde? Já conversei com ele.

NOSSSSAAAA!!!!!!! Não cabia em mim. Agradeci de montão, liguei pra produtora e marquei uma hora com o gerente.

Cheguei lá ele me mostrou a produtora inteira e quando nos sentamos na sala dele, me perguntou o que eu queria ser, eu disse diretora. Ele começou a rir meio debochado e falou:

- Você acha que vai começar de cima?

Eu estranhei aquela pergunta idiota e disse:

- Claro que não. Essa é a função que eu almejo e tenho que começar como assistente até que fique apta pra tal cargo.

Aí me disse que tinha o cargo de recepcionista.

Eu o agradeci de montão pelo tempo perdido comigo, mas disse que não me interessava porque eu tinha tido essa experiência há 10 anos quando comecei a trabalhar com quinze anos e agora estava procurando alguma coisa na minha área.

Já tinha feito estágio em agências de publicidade e ia continuar procurando algo que tivesse a ver com minha faculdade. Que se algum dia tivesse uma vaga de assistente de direção que ele lembrasse de mim.

Me despedi e fui embora.

Vários dias depois meu tio liga eu atendo e ele diz:

- E então guria, quando começa a trabalhar lá?

Puts eu sem graça de falar que recusei o cargo de recepcionista e ele pensar que eu era orgulhosa de achar o cargo inferior a mim, disse que todos foram muito simpáticos comigo e assim que tivesse uma vaga disponível ele me ligaria.

No mesmo dia liga o gerente pra mim mega feliz , até gaguejava dizendo que tinha pintado uma vaga de assistente de direção.

Constrangimento master de minha parte sabendo que provavelmente meu tio deu uma forçada na barra. Masssssssssss uma oportunidade dessa não ia aparecer tão cedo. Pensei: nunca fui peixe de ninguém, pela primeira vez aconteceu, não vou me sentir culpada. SQN.

Como era aprendiz ganhava 5% do cachê correspondente ao que o diretor ganhava. Normalmente são 20%.

Fui registrada como Assistente de estúdio e nem liguei porque eu adorava aquele lugar e não me importava com dinheiro. Era um salário “simbólico” bem baixo só pra ter registro em carteira mais os cachês por filme.

Só que fiquei com esses 5% pra sempre e descobri que assistente de estúdio naquela época era a pessoa responsável pela limpeza do estúdio. Se foi vingança do cara eu não sei, mas fui em frente ahahhaahah.

O escritório de meu tio ficava do outro lado da rua e quando ele estava em SP eu ia lá fazer uma visita. Me apaixonei por ele. Sempre preocupado como eu estava no trabalho um dia me perguntou:

-Tu tens certeza que é nesse ninho de cobras que queres trabalhar?

Ele se referia ao meio publicitário

Eu respondi imediatamente muito feliz da vida.

– Claro tio! Estudei pra isso, amo esse trabalho.

Pensando que ele era mais um de fora da área que não entendia como funcionava. Ledo engano cara inocente! Ele sabia muito bem o que estava falando e eu só o entendi MUITOS anos mais tarde e que pena que ele não estava mais aqui pra me aconselhar nos momentos mais apertados.

Meses depois tinha uma coisa que me incomodava, o sobrinho do diretor que era gentil com todo mundo menos comigo a ponto de eu perguntar alguma coisa pra ele e ele sair sem responder, fui investigar e perguntei pra um colega que era bem próximo a ele por que ele me tratava assim . Ele disse:

- Porque o cara era assistente de direção e do dia pra noite perdeu o cargo e só ficou sabendo quando perguntou (no dia que comecei) quem eu era.

Nem conversaram com ele!!!!!

Puta merda!!!!! Pensa no mundo desabando na minha cabeça. Forcei tanto a barra com o sobrinho pra ele entender que se eu soubesse que eu ia prejudicar alguém jamais teria aceitado e blablabla, consegui, viramos best friends, arrumei até namorada pra ele e 3 anos depois casamos.

Por ser sobrinha do dono eu queria mostrar que não era protegida então trabalhava feito uma condenada, virava a noite direto até que numa das viagens tomei água no meio de um canavial sabe Deus de onde veio essa garrafa e peguei Hepatite A. Tive que ficar um mês em repouso e meu diretor ligando direto pra mim puto pra eu voltar pro trabalho e eu com medo de perder o emprego queria voltar. Minha mãe ficou puta e disse:

- Negativo! Isso não é trabalho normal! Você não vai!

Bom, ganhar menos que os outros me seguiu sempre, às vezes igualava, mas já voltava a estaca zero de novo. Só em campanha política acho que ganhava a mesma coisa que um homem. Acho, porque nunca tive coragem de perguntar pros colegas.

Eu sempre estive na contramão. Quando comecei a dirigir, tinha 26 anos era muito nova pra me darem um filme de mais responsa e quando tinha alguma idéia pra melhorar um filme era muito ousada então não, siga o roteiro. Quando fiquei um pouco mais velha a moda era dar filme pros garotos de 25 anos geniais que estavam começando, rs. E depois bom... nesse meio sempre tem a modinha da vez.

E quando na crise me perguntaram qual o meu cachê e respondi o quanto tivesse no orçamento, virou lei pra sempre e quando tento voltar a pelo menos metade do que era dizem:

- Nem pensar! Tá sonhando?

Aí vem o COVID, a quarentena, pós quarentena, ih não acabou, volta pra quarentena e assim caminha a humanidade.

Meu cachê? Não tenho mais a menor idéia de quanto seja.