Em 1989 eu era assistente de direção e pegamos um documentário massa pra fazer. Naquela época ninguém tinha muita informação sobre HIV, na bem da verdade era quase nada, o preconceito era enorme. Os nossos mentores eram o Dr. Dráuzio Varela, Dr. Fernando Varela e Dr. Narciso Escaleira que ajudaram no roteiro.
No livro Carandiru que Dráuzio escreveu ele cita uma equipe de filmagem, era essa.
A produtora ficava na República do Líbano e nessa época depois das vinte e três horas era ponto de travestis e prostitutas. Como naquela época era MUITO comum a gente virar a noite editando era batata encontrar com elas na saída. Já conhecia de vista umas três.
O documentário passeou por várias tribos, fizemos uma fogueira numa praça a noite em frente a produtora e convidamos as prostitutas e os travestis para um bate papo .A conversa era bem informal e falava basicamente sobre como se cuidavam, se tinha algum cliente que pedia pra não usar preservativo e blábláblá .
Ficamos todas amigas, eu era a única mulher da equipe, então fervi com as amigas.
Quando eu passava de Kombi a noite, colocava a cabeça pra fora e gritava pra elas, todas gritavam de volta:
– Madriiiinha!!!!!!!
Nós fomos em. hospitais, em roda de droga injetável, em boate na boca do lixo, nessa eu me diverti muito vendo o Dráuzio no meio dos travestis e eles brincando com o dotô o tempo todo. Naquela época não era comum conviver com travestis, ser amigo, principalmente homens (era um mundo a parte) então foi bem engraçado ver o constrangimento do Marcio Evandro e do Flávio Terra no palco gravando a performance de um.
Enfim Carandiru. Na véspera meu diretor falou:
– Olha lá que roupa você vai hein?
Como se eu fosse colocar uma mini saia, ou qualquer roupa sexy que não faz parte de meu ser. Fui de camisetão enorme e calça larga.
Confesso, foi a única vez em trinta anos que numa gravação meu coração ficou disparado o tempo todo.
O carcereiro nos acompanhou, abre uma grade, todos entram num espaço com grades dos 2 lados, assim que todos entram ele fecha essa grade e abre a outra.
Meu diretor pediu pra que eu ficasse com o carcereiro nessa “salinha”.
Tô lá conversando com o cara meio de costas pras grades, de repente eu sinto um arrepio na nuca e olho pra trás, uma parede de homens pendurados nas grades, como uma performance, do alto até embaixo. Foi assustador. Daí acharam melhor eu entrar e ficar com a equipe pra acabar com a curiosidade.
E foi o que aconteceu mesmo.
Era a penitenciária masculina, essa ala era a de aidéticos, como eram chamados na época.
As celas não tinham portas, uns cuidavam dos outros, O Dráuzio entrevistava os caras.
Tem uma cena muito forte que me marcou, um detento estava carregando no colo um colega como se estivesse carregando um travesseiro e o colocou na cama. O cara ficou em posição fetal, ele era uma esqueleto com pele. Um morto vivo. A grande maioria já tinha aquela aparência característica, que graças aos coquetéis hoje ninguém morre disso ou fica definhando dia a dia.
Todos eram educados, calmos, só me dei conta quando saí que qualquer um ali podia ter pegado uma seringa contaminada feito refém um de nós pra cair fora. Nada!
Na hora de ir embora quando eu estava passando pela grade senti uma coisa muito leve no meu cabelo, olhei pra trás e era um menino talvez da mesma idade que eu que pegou uma pequena mecha e escorregou sutilmente os dedos. Quando eu olhei pra ele, o olhar dele era de saudade de uma vida, uma certa tristeza misturada com um pequeno prazer.
Ele tinha uma tatuagem na testa, que fiquei sabendo depois, que era a marcação para o cara que era “mulher” na prisão. Fiquei com muita dó desse menino. Eu lembro do carcereiro perceber minha expressão e me dizer:
– Fica com dó não, aqui ninguém é santo.
Na penitenciaria feminina a coisa foi mais tensa pra mim, elas eram agressivas, nada simpáticas, eu nem olhava muito nos olhos com medo de uma invertida. Ficava de cabeça baixa só escrevendo as marcações e aquela taquicardia.
Experiência única.
Fizemos algumas sonoras com famosos e meu diretor me mandou sozinha com a equipe porque ele tava atulhado com outros filmes.
Imagine a inexperiente aqui, novinha gravar com Hebe Camargo, Irene Ravache, Paulo Ricardo e a namorada dele na época Luciana Vendramini e Jô Soares, não lembro mais quem.
A Luciana gravamos no estúdio, avisaram que ela tinha chegado. Entrou uma criança, com um cara alto e eu fiquei esperando a Luciana atrás e nada. A criança era ela. Uma menina magrinha, pequeninha. Choquei. Foram pro camarim e quando ela se sentou no banquinho pra gravar, foi uma coisa maluca, eu olhava pra ela fora do monitor e falava com a criança, olhava pro monitor, era aquele mulherão. Eita! Que cachaça era aquela? Fiquei fazendo várias vezes o vai e vem pro monitor pra ver se passava a impressão. Muito meiga.
O Jô pegamos na saída de um espetáculo dele, ele sabia que iríamos ali e sobre o que falaria. Extremamente educado e cheiroso, quando me apresentei disse que era a Ana da Barriga Verde ele não perdeu a piada, pegou a barra da minha camiseta e levantou um pouquinho pra ver a barriga verde. Eu estava tão acostumada com o nome da produtora que nunca pensei na Barriga ser uma barriga, rs, dali pra frente mudei a apresentação para a Ana da produtora Barriga Verde.
Não preciso dizer que gravar com a Hebe foi divertidíssimo, mega bem vestida, cheia de joias, maquiada e “encabelada”, com um bom humor contagiante.
Foi uma experiência inesquecível pra mim porque gravei muita coisa sozinha e tive que incorporar meu lado atriz pra fingir que não estava insegura e que era a coisa mais comum do mundo eu gravar com esses figurões e fazer sonoras já que não sou jornalista, sou publicitária.
Quando a gente vive na produtora nem se liga de pegar cópia das coisas que fazemos porque estão ali, naquele momento não concebemos a possibilidade de fechar a produtora no futuro. Não tenho nem 1/3 dos trabalhos que fiz. Mas esse eu achei no youtube, a qualidade tá péssima mas é uma boa visita no passado pra ver o tamanho da desinformação que tínhamos na época.
Clique no link abaixo para ver o documentário: AIDS o Código Pirata
https://www.youtube.com/watch?v=ep8tjsC-6pg
Que belo relato, Ana, e que experiência incrível. A Hebe na abertura do doc arrasou! :)
ResponderExcluirObrigada minha linda!
ExcluirPrimeiro: que coragem Ana, não vejo vc nessas situações rsss...
ResponderExcluirQuando ele falou: ve lá a roupa q vai usar, eu obtive uma risada tamanha e lendo sua resposta q não faz parte do meu ser, chorei....quem te conhece ve me mesmo que não faz parte....
Q experiência maravilhosa, tudo muito dez....
Parabéns...
Você me conhece do avesso!
Excluir😉😉🤣💋
ExcluirParabéns pela coragem, acho que não foi fácil mesmo Ana.
ResponderExcluirObrigada Rogério! Não foi.
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