Angola, 1992 - Texto de Fernando Nunes

 



Uma coisa que sempre valeu a pena na minha profissão são as viagens, me levou à lugares que normalmente não iria, que nem sonharia em conhecer. Mas de todas a que mais me marcou foi a primeira vez que fui à Angola.

Em 1992, em uma sexta feira recebo um telefonema do Carlinhos Ricci, diretor, me convidando para ir à Angola participar da campanha política do MPLA, José Eduardo dos Santos era o candidato, o Zédu.

Quem estava lá era o Hamilton Oliveira, diretor de fotografia baiano, ele em uma externa coçou os olhos e pegou uma inflamação que ficou feia, como não melhorava teve que voltar ao Brasil, fui substituí-lo.

Minha chegada já foi tumultuada. Quem administrava o aeroporto era o pessoal da Odebrecht, uma bagunça, minha bagagem sumiu. A sorte é que também carregava uma pequena mala de mão, algumas poucas coisas estavam lá. Depois de uns dois dias recebi da produtora quinhentos dólares para comprar roupas.

Por causa da confusão da bagagem acabei chegando à noite no hotel, fui direto para quarto do Carlinhos e do Nabor, coordenador de produção. Fiquei um tempão conversando, rindo e bebendo muito. Meu quarto era um andar abaixo, esse andar foi batizado pelos baianos, que eram maioria, de Avenida Antonio Carlos Magalhães. Só de entrar no corredor a gente já ficava “louco”, por causa de certa fumaça que pairava no ar.

Já de madrugada desci as escadas e caminhei para o meu quarto que era no fim do corredor, nisso sai de um quarto ao lado do meu um sujeito alto, não bombado, mas forte o suficiente para dar medo, aparentemente ele estava tão bêbado quanto eu, até pelo copo que carregava na mão. Ele me encarou com uma expressão muito feia e começou a gritar partindo para cima de mim:

- Quem é você? O que tá fazendo aqui?

Eu travei, comecei a gaguejar, no meu estado de embriaguez só consegui balbuciar para ele ligar para o Carlinhos.

- Não saí daí, senão te quebro.

Ele ligou, o Carlinhos disse quem eu era, voltou e só fez um sinal com a cabeça para eu entrar no meu quarto. No dia seguinte descobri que ele era irmão do Geraldo Walter, marqueteiro da campanha, se eu não estivesse bêbado teria reparado, era bem parecido. Ele veio pedir desculpas e me disse que eu tinha cara de terrorista árabe e que em Angola havia muitos mercenários, na época eu usava bigode, dias depois tirei, quem sabe assim não iam mais me confundir.

Na primeira vez que fui para a produtora entendi a neura. Enquanto ficávamos na calçada, o motorista acompanhado de um segurança com uma AK, olhavam atentamente em baixo da Van, só depois pudemos entrar, ele checava se havia bomba escondida. O Savimbi, adversário do Zédu e líder da guerra civil, estava muito a fim de “pegar” os brasileiros que faziam a campanha.

No caminho pude observar a cidade. Muita gente na rua, as “candongas”, como eles chamavam, eram os carros, caminhões pequenos e Vans que transportavam as pessoas, absolutamente lotadas e o transito era uma balburdia, mas que de alguma forma eles se entendiam. Vi muitas construções com buracos enormes na fachada, resultado de bombas e tiros. Somente poucas lojas funcionavam, a maior parte do comércio era na calçada, camelôs que vendiam de tudo. O contraste das construções cinzentas com os tecidos africanos coloridos das mulheres formavam um mosaico estranho, mas lindo.

Angola era o país com mais minas terrestres no mundo que foram colocadas na sua maioria pelos cubanos. Haviam muitas pessoas mutiladas em Luanda, sem uma perna ou braço. Essas minas eram chamadas de “efeito moral”, não matavam, mutilavam.

Logo que cheguei na produtora uma fila enorme de pessoas na porta do estúdio me chamou a atenção, o Carlinhos vira para mim e fala:

- Fernandinho, hoje vamos gravar a contagem regressiva, é simples, uma folhinha na parede, plano fechado, a pessoa entra em quadro, faz o “V” da vitória e sorri. Faz a luz enquadra e dirigi aí pra mim, tenho muita coisa pra fazer. – e saiu rápido, sem me dar chance de protestar.

Quando comecei percebi a encrenca, as pessoas não conseguiam entender, entravam em cena e quando faziam o “V” não sorriam, quando sorriam não faziam o “V”, foi o dia inteiro de sofrimento, nunca xinguei tanto o Carlinhos.

Um dos primeiros roteiros que recebi foi de um comercial com uma analogia entre guerra e paz. Três laranjas e três granadas, três enxadas e três AK. A produção conseguiu as granadas e as metralhadoras no mesmo dia, as laranjas e as enxadas quase no fim da campanha. O armistício foi costurado entre o MPLA e a UNITA para a realização da campanha, só que quando os exércitos foram desmobilizados ninguém devolveu as armas, a sensação de perigo era enorme e comentei isso com o Carlinhos depois de alguns dias. Ele estava em Angola há mais de oito meses, olhou para mim e disse:

- Você acha? Não, pra mim tá tudo calmo, normal.

Depois de uma semana pensava igual, percebi que o ser humano tem a capacidade de se adaptar em qualquer situação.

O hotel ficava em frente ao porto. Quase todo dia, por volta das vinte e três horas, entrava em cena um personagem que foi batizado pelos brasileiros de “O Selvagem da Motocicleta”. Angola não produzia basicamente nada, quase tudo era importado, a movimentação no porto era grande. O povo não tinha muita opção, a invasão de pessoas para roubarem mercadorias era diária. Da janela do meu quarto ouvia o som da motocicleta e o barulho de corrente sendo arrastada, era o Selvagem da Motocicleta vigiando, usava o barulho da corrente para assustar e quando pegava um invasor batia nele, depois de algum tempo via balas tracejantes que cruzavam o céu na tentativa de afugentar as pessoas. Só ia dormir depois disso, na manhã seguinte sabíamos o que tinha chegado no porto, as mercadorias eram vendidas na rua.

Mais ou menos no meio da campanha alguns integrantes da UNITA explodiram parte do fornecimento de água de Luanda. O hotel entrou em um racionamento, só tinha água das sete às oito da manhã e da dezenove às vinte horas. Como nunca sabia a hora que voltaria ao hotel, resolvi encher de água a banheira para quando voltasse poder tomar banho. Infeliz ideia. Quando voltei e fui olhar a banheira era nojento. Uma crosta de lama com cheiro ruim ficou acima da água e lama também na parte de baixo, era com essa água que escovávamos os dentes, tomávamos banho.

Aliás, a água era um problema. Além do salário acordado, recebíamos mais quinhentos dólares para as despesas. Telefonema para o Brasil, que só consegui ligar uma vez, jantar e principalmente comprar água. Como tudo era comprado na rua, muitas vezes achava uísque de primeira a mais ou menos dez dólares, água, uma garrafa de um litro, mais ou menos quinze dólares. Conclusão: tomei mais uísque que água.

O que mais me deixava contrariado era quando tinha que ir ao Palácio do Futungo, o centro do governo, onde Zédu morava, gravar algum depoimento do próprio ou de outra “autoridade”. Na rua as pessoas morriam de fome, viviam de uma forma desumana, mas dentro da área do palácio era uma ilha, tinha de tudo, uísques, vinhos, comida em fartura, muito conforto, não faltava nada. Toda vez eu saia de lá com raiva. Por que os governantes nunca pensam no povo? E eu ajudando a eleger um ditador... Tinha e tenho que sobreviver.

Fiz treze campanhas entre prefeito, governador e presidente, agregado a essas algumas de vereador, deputado federal e senador. Quando você participa de uma campanha, passa a conhecer as ideias, propostas e até intenções do candidato. Sem generalizar, dos que ganharam a maioria só queria se dar bem. Alguns tinham boa intenção, mas foram corrompidos ou engolidos pelo sistema. O poder é uma espécie de ferrugem que corrói o caráter.

Isso não acontece só com políticos, quando se dá ou se conquista pequenos poderes as pessoas mudam. Tenho quarenta e dois anos de profissão, conheci diretores de fotografia e diretores que quando estavam no começo de carreira ou “por baixo”, eram pessoas incríveis, bastou passarem a trabalhar em produtoras grandes ou virarem “a bola da vez”, que se transformaram em verdadeiros ditadores no set. E não é só com diretores de fotografia e diretores, vi isso acontecer desde assistentes até donos de produtora. Desculpem sair do tema, mas sempre me revoltei com isso.

Acho que já escrevi demais. O que passei por lá foram experiências que me marcaram. Ver de perto o que décadas de guerra faz com um povo nunca mais esquecerei. Fiquei em Angola quarenta e cinco dias que foram muito intensos, tem muito mais histórias que depois conto.

Resolvi colocar como foto de capa desse texto a tia Cati, ela trabalhava na produtora quando voltei a Angola entre 2014 e 2015. Tirei essa foto no estúdio, acho que ela representa muito do povo angolano. Ela é uma pessoa alegre, mas seu olhar entrega todo sofrimento de uma vida dura.


                            Contagem regressiva - vídeo do Blog do Noblat


                        Comercial laranja - vídeo do Blog do Noblat



                        Comercial enxada - vídeo do Blog do Noblat


 

                           Vista do porto, foto tirada do meu quarto no hotel.


                                        

                               Comício na periferia de Luanda.



                 Mesmo comício, atente ao detalhe do segurança com uma AK



Comentários

  1. wagner wilson barbosa14/04/2021, 15:44

    Boas histórias hein professor, vc com esse bigodinho ahahah até eu teria medo, Parabéns pelo trabalho

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    1. Fernando Nunes14/04/2021, 16:37

      Ô Wagnão, eu também teria medo, por isso tirei o bigode....kkkkk. Valeu, obrigado.

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  2. Nada como viver na pele o que se passa nesse mundão afora, sabemos de tão pouco, e temos graças a vcs a nos dissertar passagens maravilhosas.
    Quanto ao bigode rsss..., meu marido não cortou como você depois de vários episódios ocorridos 🤔, toda vez que viajamos por aeroportos ele para nas revistas, aquele bigode parecendo o Saddam Hussein hahahaha....., sempre passo separado dele rsss...mas já foi pior na época, agora está mais light 😉

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    1. Fernando Nunes27/04/2021, 07:01

      Obrigado Katia. Sei o que ele passa por causa do bigode....kkkkkkkk

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  3. Parabéns pela lembrança, Fernando. Todos nós que vivemos, compartilhamos essa experiencia, de algum modo ficamos profundamente marcados por ela. Eu fiquei tanto que depois de alguns anos voltei à Angola e, praticamente vivi por lá quase 10 anos entre idas e vindas. Grande abraço!

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  4. Quanta história boa, Fernando. Neste período eu morava na Itália, e soube que vcs estavam em Angola, mas imaginei que era para rodar um filme. Um dia, assim que a poeira baixar, vamos abrir um bom vinho pra ouvir suas histórias de Angola, com todos os bastidores impublicáveis, rsrsrs... Abs1

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