Mais uma da Globotec.
Cenário em externa é sempre complicado. Nesse caso era um comercial da farinha São Jorge. Em uma cozinha, na bancada, vários produtos para fazer bolo. Closes da preparação, com ênfase para a farinha. Corta para plano geral, vemos um cavalo branco, entra ator vestido de São Jorge, dá um texto rápido de dez segundos, monta no cavalo, a parte de trás do cenário abre e vemos São Jorge cavalgar para o infinito... Sem julgamento da criação, por favor.
O cenário foi montado em dois dias, não dava para fazer pré-light nem adiantar a produção de arte.
No dia da gravação chegamos de madrugada, a arte e fotografia foram tocando juntas. Com uma operação complexa dessas tudo ficou pronto somente no começo da tarde.
Enquanto preparavam o ator fizemos as cenas fechadas deixando por último a cena final com som direto.
Plano geral, cavalo colocado no lugar por seu adestrador, tudo preparado, então chama o ator! E ele entrou poderoso no cenário com seu figurino absolutamente perfeito, um cara alto, bombado, então, vamos ao ensaio.
O diretor sentou na frente do monitor junto com o pessoal da agencia e deu a ordem:
- Atenção, ensaiando, ação.
Quando nosso São Jorge começa a dar o texto imediatamente o diretor deu um grito:
-COOORRRTAAAA!
O ator era completamente afeminado, tanto na voz como nos gestos. Olhei para o diretor, estava de boca aberta, as pessoas da agencia incrédulas. O ator foi aprovado por foto, não fizeram teste de VT. No set, pela correria, o diretor não teve contato e ninguém do casting ou da maquiagem avisou. Sem teste e na correria, a possibilidade de dar merda é grande.
Agora imaginem, na década de oitenta, com todo machismo, com tanta homofobia da sociedade da época, um São Jorge afeminado não dava!
O diretor respirou fundo e foi tentando dirigir o ator de forma calma, mas que foi, a cada tentativa, indo embora. Ele foi ficando vermelho, começou a suar, até que não aguentou, foi em direção ao ator e falou no ouvido dele:
- Você é ator?
Uma leve afirmação com a cabeça.
- Então PELAMORDEDEUS atua como HOMEM!!!
A partir daí fudeu... O ator travou.
Apesar de ter bastante luz artificial precisávamos da luz natural, afinal, como iluminar uma profundidade absurda quando o cenário abria? Fui falar com o diretor, tínhamos, no máximo, mais uma hora e meia para gravar, senão teríamos que cancelar o trabalho e gravar no dia seguinte.
Começou a bater desespero em todo mundo, adiar, proteger o cenário, desmobilizar uma equipe grande, o custo de mais uma diária, procurar outro ator. Não dava! Tinha que gravar!
A agencia e o diretor ficaram em um canto tentando achar um jeito, resolveram cortar o texto pela metade, não funcionou. Quase no prazo final a solução veio, jogaram a fala do ator para locução off, o ator só teria que entrar em cena, subir no cavalo e partir. Deu certo e conseguimos gravar, ficou lindo. A luz acabou sendo a ideal, na ilha de edição fizeram um pouco de câmera lenta, o que acabou dando um charme a mais.
Nós, do meio, acreditamos que existe algum santo protetor, não sei se é Santa Clara, Virgem Maria ou o próprio São Jorge, por mais que as coisas não funcionem, quase sempre acaba dando certo.
A lembrança desse comercial me fez pensar o quanto a sociedade e eu mudamos. Nessa época fazia brincadeiras homofóbicas e não me achava homofóbico, mas era. Houve evolução, mas precisamos de muito mais, principalmente respeito com o diferente em todos os sentidos.
Quem sabe chegará um dia em que São Jorge poderá ser representado de qualquer forma.
O locutor em off salvando a pátria. Não fui eu.
ResponderExcluirkkkkkkk...Verdade Viviani, essa não foi você, mas já salvou muitas outras pátrias.
ExcluirLegal! Nem sabia deste talento do Fernando Nunes. Parabéns pela capacidade de extrair de um episódio cotidiano, apesar de afeto a nossa área de cinema, um questionamento moral e ainda, humildemente como redator se posicionar, assumindo um erro pessoal. Um texto de estrutura simples, porém inteligente. Consegue cutucar a questão dos "criativos", aliás situação que só se agravou, a questão dos prazos de produção, quando as agências de publicidade querem compensar o atraso da criação na "linha de produção audiovisual" e, por fim nos brinda com um posicionamento humano generoso de auteridade, pra usar um termo moderno à simples ACEITAÇÃO do outro.
ResponderExcluirObrigado Fê!
Nabor, fico emocionado com suas palavras. Aguarde que virá um texto sobre quando cheguei em Angola, fui direto do aeroporto para o seu quarto e do Carlinhos, lembra o porre? Muito obrigado!!!
ExcluirComentei acima sobre o texto do Fernando Nunes, mas não apareceu o meu nome (Nabor).
ResponderExcluirJá me inscrevi no blog.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA dificuldade q vcs enfrentam, q aparecem a fazer um comercial, um curta, um filme, etc... é realmente inacreditável, ninguém imagina o q vcs passam, tiro meu chapéu a vcs ....Bravo...
ResponderExcluirKatia
Katia, você não viu nada ainda....kkkkkkk....Muito obrigado!!!
ExcluirMaravilhoso texto e reflexão, nosso meio é lotado disso. Poucos os que já se observam. parabéns pelo texto e pela coragem.
ResponderExcluirValeu Zeca, muito obrigado!!!
ExcluirSensacional ! Tive uma passagem semelhante na mesma época... Era um filme de Tenis Bamba , onde tinhamos um batalhão militar em treinamento ... Em determinado momento o Capitão se dirigia ao batalhão: Saiu um grito , com plenos pulmões, “PELOTÃAAAAAAAOOOO”
ResponderExcluirNão aguentamos e a equipe caiu na gargalhada....
ahahahahahah
ExcluirMuito bom Rica....kkkkkkkkk
ExcluirHomofobia e outros tipos de preconceito eram naturalizados na nossa área. Acho que estamos melhorando, mas é cedo para comemorar. Ainda ouço cada uma... Eu tive outro tipo de aventura escolhendo elenco sem teste. Ia fazer um video de treinamento para a Credicard, com uma história que girava em torno de uma central de inteligência de um país comunista para saber como funcionava o sistema de cartão de crédito. Queriam lançar o Redcard! Para fazer o chefe do serviço secreto tinha toda a certeza do mundo que o ator ideal era um sujeito do qual não sabia nada, que só conhecia por sua participação em um comercial de uma construtora onde dava um esporro homérico em um mestre de obras: "estou com uma máquina de um milhão de dólars (sic) chovendo em cima". Na primeira diária de filmagem eu estava excitado em trabalhar com o cara. No nosso primeiro ensaio, o texto dele saiu quadrado, como um ator amador ruim ou um grande ator imitando um canastrão. Tentei um bocado até ele me confidenciar que ficara 30 dias decorando o texto do comercial que fazia sucesso e que, na verdade, era engenheiro. Tive que dispensar o sujeito meia hora depois de ele ter chegado. Telefonei para o grande e saudoso Renato Master que veio salvar minha pele. Sem teste, nunca mais.
ResponderExcluirJá vi cada uma por falta de teste Edu...
Excluir