Fui convidada por Telma Sobolh, presidente do voluntariado do Hospital Albert Einstein, a dar um curso de cinema na comunidade de Paraisópolis, onde eles têm um projeto social fantástico, acho que foi em 2003.
Eu expliquei que não era possível dar um curso técnico, isso envolvia uma organização grande, mas que eu ia pensar no que fazer a respeito.
Resolvi dar um curso de “como assistir um filme”, pode parecer bobo, mas nem todo mundo entende o que a direção de arte, a fotografia ou os ângulos de câmera querem mostrar, às vezes é só estética, mas outras vezes o conjunto intensifica uma emoção, conta a história.
O curso foi montado aos sábados para os adolescentes.
Primeiro dia, aquele desconforto da parte deles porque não sabiam muito bem o que ia acontecer. Me apresentei e expliquei qual era a parada. Eles não me olhavam nos olhos, era um misto de timidez com desconfiança, ouvia risinhos daqui olhos revirando dali e eu fingia que não percebia.
– Nós vamos assistir um filme que não tem diálogos, não tem atores,
são imagens, trilha e silêncio, mas eu gostaria que vocês prestassem atenção
a tudo, mesmo que seja chato.
Mandei de cara Koyaanisqatsi dirigido por Godfrey Reggio, um americano que faz documentários experienciais. O primeiro filme da trilogia Qatsi, Koyaanisqatsi significa vida maluca, vida em turbilhão, vida fora de equilíbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que pede uma outra maneira de se viver ele foi lançado em 1982, veja você 1982!!!! Imagine atualizar essa parada!
A trilha de Philip Glass tem papel crucial nessa obra. A fotografia belíssima é de Ron Fricke. E a montagem... é o que dá sentido a tudo.
O filme retrata a relação do homem e a tecnologia com a natureza.
Ele começa com imagens de uma pintura rupestre corta para o lançamento de um foguete, vai para uma sequência de cenas looooongas da natureza intocada, com time-lapses lindíssimos e aquela trilha minimalista calma que te transmite paz, os meninos começaram a arrastar a cadeira, se olhavam e seguravam o riso, já meio de saco cheio tipo: que cachaça é essa mâno? E eu só de zóião lá no fundo da sala, de repente começa a acelerar trilha e imagens como uma locomotiva, a trilha vai ficando agressiva, dramática até chegar no impacto do homem no mundo natural, uma explosão de mina, daí pra frente é o mundo como ele é, cheio de prédios, gente pra caramba e a urbanização, a rotina. Tem uma sequência bem interessante, uma fábrica de salsichas corta para uma escada rolante com trocentas pessoas em fast, parece que o tempo das cenas sempre passa do ponto, são looooongas, repito. E assim se desenrola o filme, intercalando imagens rápidas com lentas, e a trilha num determinado momento fica quase que insuportável, aguda, dramática, rápida com imagens aceleradas e aquilo vai crescendo e passando do ponto até que PÁRA. Silêncio. TODOS, inclusive eu suspirei, é pra causar isso mesmo. Entra uma aérea de cidade, volta a trilha agora num ritmo normal, mostrando pessoas, até chegar na mesma imagem da abertura, uma pintura rupestre e FIM.
Imagine o silêncio na sala. Aí perguntei:
– O que acharam?
Silêncio.
– Esse filme foi feito pra mexer com a gente, provocar uma discussão, o que somos aonde chegamos, o que estamos fazendo com a natureza em nome do progresso.
– Somos pessoas felizes? Não eu, você, digo no geral, somos?
– Percebemos o aqui e agora ou vivemos abiloladamente sem sentir as horas passarem?
O silêncio imperava.
Comecei a passar o filme novamente parando em trechos mais explícitos e mostrava como a sequência de cenas, sua velocidade, a trilha na mesma velocidade, ora inversa era importante pra interpretação da mensagem.
Se a montagem e a trilha fossem diferentes, teríamos outro filme.
Eles ainda tímidos, continuaram em silêncio, jamais diriam que tinham achado uma merda o filme.
Me despedi dizendo que os veria no próximo sábado e que pensassem no filme.
Achei que não viesse ninguém.
Voltaram todos.
Avisei que ia passar o segundo filme da trilogia, Powaqqatsi, eu ri porque a cara que fizeram era a de que seria outro dia enfadonho, perguntei:
- Acharam chato o outro? Vão ter que aguentar esse, cinema não é só entretenimento, é reflexão também e se vocês não assistissem aqui comigo jamais veriam esses filmes. Bora ter boa vontade e não viajar durante o filme.
Powaqqatsi quer dizer a vida em transformação.
Segue a mesma linguagem do primeiro, imagens lentas ou rápidas, trilha marcante, fotografia e enquadramentos belíssimos, mas o tema é o homem e a humanidade. A montagem traz momentos marcantes, cenas que nunca esqueci como um homem sentado na rua pedindo esmola e uma sobreposição de imagem com pessoas passando pela rua como se ele fosse invisível. O oriente, o ocidente, a pobreza, o terceiro mundo.
Antes de começar o filme eu expliquei o que era direção de arte e que às vezes ela era sutil, só pincelada num filme, uma cor, mas tá lá, foi pensada e pedi que prestassem atenção e se manifestassem durante o filme.
Um teve a coragem.
– Seria o vermelho? Quase em todas as cenas têm um objeto vermelho.
Aí começou uma comoção entre eles cada vez que aparecia o vermelho, num lenço ou na pedra do piercing, ou num varal, virou festa. A participação deles em mostrar que não passava batido nenhum detalhe foi divertido.
Quando acabou o filme já não tínhamos uma sala muda, era conversa atravessando conversa. Acendi a chama. Prometi que no próximo não ia passar o terceiro da trilogia, seria outra viagem. Felicidade geral!
A cada sábado era uma visão, interpretação, um estilo de direção, características de alguns diretores, como Almodóvar, por exemplo, que nunca tinham ouvido falar. Convidei amigos para falarem de cenografia, direção de arte, fotografia, som direto, então sempre era uma surpresa.
Eu sei que no final do curso éramos todos amigos e já tinha duplinha combinando pra ir ao cinema assistir “Má Educação” do Almodóvar que ia estrear, falando assim mesmo o nome do filme e direção.
Missão cumprida. Não dei continuidade ao curso ou abri outros infelizmente por falta de tempo, naquela época o mercado publicitário bombava.
Trailer Koyaanisqatsi
https://pt.wikipedia.org/wiki/Koyaanisqatsi
https://nosbastidores.com.br/critica-powaqqatsi-vida-em-transformacao/
Que pena q não deu continuidade, gostaria eu de fazer parte desta turma e aprender detalhes riquíssimos de sua sabedoria.
ResponderExcluirSe eu fizer outro te arrasto junto
Excluir😉😉😉💋
ExcluirAna! Só de ler a descrição do filme, deu tontura, eh eh. Confesso que me empolguei na sua narrativa. E deve ter sido uma experiência incrível para todos, para você. São em trocas assim que todos crescemos!
ResponderExcluirEntão consegui descrever com exatidão, rs. Sim Denis, são em trocas assim que crescemos.
ExcluirBela história e belo projeto, Aninha!
ResponderExcluirObrigada Vivi!
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