Fernando Pessoa e a Direção de Cena - texto de Ana Cal


 


Fernando Nunes, diretor de fotografia, meu companheiro profissional há 30 anos, me apresentou o Poema em Linha Reta de Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa.

Nunca me identifiquei tanto com uma poesia, foi escrito entre 1914 e 1935, mas tão atual, tão Instagram, muito o nosso meio publicitário.

Comecei a dirigir no inicio de 1990, quando Collor confiscou o dinheiro de todo mundo, aí os filmes sem grana que eram destinados à iniciante aqui foram disputados a tapa pelos grandes e eu tinha que ficar com os mais sem orçamento ainda.

Os filmes publicitários se transformaram em um fundo infinito e um ator, mas se você tem um bom roteiro e um ator BOM você não precisa de mais nada pra fazer um bom filme.

Surgiram também os “Comunicados”, um fundo eletrônico liso com a cor do cliente, locução e Lettering subindo, nem trilha tinha. Virei à diretora dos tais.

- Pelamordedeus é só gravar a locução e o editor colocar o Lettering acompanhando!!! O que eu vou fazer nesse job? Atormentar o editor?

 A resposta do atendimento:

- É claro que precisa de diretor! A agência vem acompanhar!

E o atendimento serve pra...?

Então meu trabalho era ir pro estúdio de som do Melito e do Altair (grande Tatá) me divertir e como me divertia! Gravar a locução com KK, Baiano, Ronan Junqueira, Antônio Viviane, só feras, pegar a fitinha e trazer pra ilha de edição. Descobri que minha função naquele latifúndio era tourear o editor pra ele não matar o criativo que ficava tomando whisky como se tivesse num happy hour fazendo a maior chacrinha na ilha, e, conforme a garrafa ia esvaziando, o ser iluminado ia mudando de ideia trocando seis por meia dúzia. Estamos falando de 1990 edição linear, cada alteração era um puta trampo e a cada geração do material ia detonando a qualidade do filme.

Um trabalho que era pra ser feito em duas horas, acabava virando a madrugada e o criativo só parava de “viajar” no limite de entregar a tempo a fita pra emissora. Cada vez que pintava um comunicado, no mínimo uma vez por semana e era sempre no final do dia, eu já sabia que ia ter que aguentar o mau humor do editor e um mala “criativo” com aquela cara de quem comeu alguma coisa estragada e não queria admitir, sempre “blasé” como se fosse um ser especial. Pode passar doze horas preso com você numa sala que a criatura não sai do salto. Queria saber quem foi o primeiro babaca a agir assim pra virar referência pra quase todos. Vergonha alheia.

Mas não era só de Comunicados que eu vivia.

Entrou um orçamento de um comercial com Antônio Fagundes, um plano só, ele e a câmera no fundo infinito.

O atendimento disse para o orçamentista:

- Dá pro fulano.

Eu perguntei:

- Por que não me dão esse?

- Ahhhhhhhhhhhh imagina você dirigir o Antônio Fagundes!!!!!!  Esse filme tem que ser de fulano (um criativo que resolveu brincar de dirigir), não durou muito.

Eu pensava: Porra dirigir esse cara é baba, você dá o tom e cronometra, difícil é dirigir os modelos que vocês me dão com texto de 30 segundos. Não desmerecendo os modelos, mas ator é ator. Eu só pegava bucha.

O único filme que fiz na vida que foi gongado tinha no roteiro uma criança que precisava ser parecida com um famoso apresentador de TV, nem fizeram teste de VT, já tinham o garoto que era a cara do tal, o garoto apareceu no dia da gravação.

Ele era gago, GAGO!!!

Quando você cria um filme de trinta segundos pra criança, o texto tem que ter uns vinte segundos mais ou menos porque o tempo é outro, se a criança falar depressa você não entende porra nenhuma.  Na época eu não peitava agência, hoje devolvo o roteiro e mando um “pode cortar um montão desse texto aê companheiro”. 

Voltando ao filme do menino gago.

O atendimento não me defendeu, a agência não fez um mea culpa, eu fiquei apavorada porque era um dos meus primeiros filmes e não cancelei a diária!!!!! Fiquei tentando, insistindo no impossível porque não tirava da minha cabeça o Antônio Fagundes. Fiquei olhando a grama do vizinho e não vi que pra plantar a porra da grama no meu quintal eu tinha que ter terra e se tivesse cimento no lugar era só dizer, é impossível plantar.

Essas e outras tantas lembranças vieram quando li o Poema em Linha Reta.

Escolhi algumas frases que me representam:

           

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada”.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”

 

“Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.”

“Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...”

“Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?”

 

 

 

 


Comentários

  1. Ahhh, não perco isso por nada! Inscrita!!! E adorei o primeiro texto. 😊

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  2. Adorei! Parabéns!

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  3. Hahaha mal posso esperar pela próxima rs...
    Gago?? Kkk peloAmor!!!

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    1. Ainda bem que você não estava comigo nesse set

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  4. Sempre bom ler estórias da vida. Adorei. Bjs

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  5. Sensacional, Aninha!
    Até eu faço parte da história, ahahaha...
    Bjs

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    1. Tem outra contigo Vivi que antes de publicar quero sua opinião se o outro amigo envolvido vai ficar magoado ou vai levar na esportiva, rs.

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  6. que delícia Ana!!!!! que saudade de vc!!!

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  7. Flávio Murilo16/02/2021, 20:30

    Que legal Ana, estou adorando! Bjs...

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  8. Quem conviveu nesse meio sabe perfeitamente como é esse olimpo. Ô bobage!

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  9. "Comunico" que gostei do texto, hehehehehe. Quanta porrada regada esperança? Quantas decepções manchadas de resiliência? Quantas lágrimas perdidas na coragem? E aqui estamos... usufruindo da tua experiência, Ana. Sorte e saúde.

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  10. Como esse passou?
    Jamais poderia trabalhar com vc, gago? Não iria prestar, mas experiências compartilhadas são ótimas pra nos fazer crescer e admirar mais ainda as pessoas q gostamos, virei fã, BRAVO....

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    1. Passou porque só fazia publicidade sem texto, anos depois gravei com ele novamente, ficou afetado estrelinha mas curou a gagueira.

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